Maria tinha um pequeno cordeiro, cuja lã era branca como a neve, e a todo lugar aonde Maria ia, o cordeirinho a seguia em breve. A infanta de cabelos escuros e com fartos caracóis era cega, porém exibia enormes olhos, que eram pretos como carvões. Pobre criança se tornava assim indefesa ao cruel mundo que a cercava, mas Maria tinha o seu anjinho barroco, que preenchia a sua deficiência e que era a sua fonte de conforto e proteção. Maria também tinha um papai, que a adorava mais que a própria vida, desde que sua esposa faleceu o bem estar de sua filha tem sido seu principal objetivo.
Seu pai acordava sempre antes do raiar do sol, para assim poder manter o sustento de sua pequena e harmoniosa família. Mas ele nunca partia sem antes deixar um beijo amoroso em Maria e um acariciar afetuoso no cordeirinho, o qual sempre cuidava do sono de sua fiel companheira. Os dois mantinham uma relação recíproca de amor e confiança, para o cordeiro o sorriso de Maria era um milagre divino em prova, a felicidade da garotinha iluminava a sua alma, a manifestação de euforia verdadeiramente tomava conta de seu ser, esse feitiço era algo que jamais alguém poderia compreender unicamente sentir.
Maria adorava a neve, presenciar flores do campo congeladas derramava vida em si. Um dia pôs-se a passear pela floresta congelada, e não importando o caminho trajado, o cordeiro prontamente a seguia. Entre risos e brincadeiras os dois foram se distanciando, os lindos cachinhos de Maria estavam cobertos de pontinhos brancos, o encanto da pura e branca neve suavemente derretia em seu rosto, e o fato de saber que seu querido amigo estava sempre ali, pronto para lhe oferecer todo o amor e carinho que possuía a deixava sempre tão amável e tranquila, a paz que ela precisava estava ali.
Por entre os galhos secos, ouviu-se um estranho ruído, algo os observava. Maria podia sentir o cheiro maligno envolta, encontrava-se relativamente distante do cordeiro, apreensiva tentou aproximação e cautelosamente foi vagando, quando já próxima, foi surpreendida por uma criatura que se interpôs entre os dois. Assustada levou a mão aos lábios, ela reconhecia aquele animal, seu pai já havia lhe contado estórias sobre o lobo selvagem de olhos vivamente vermelhos, sua pelagem era branca acinzentada, a criatura exalava ódio por entre os afiados dentes caçadores, e ele fitou sua atenção exclusivamente para o cordeirinho apavorado, ela notou que em segundos iria produzir um ataque feroz e devastador ao seu amado amigo. A adrenalina da garota estava a todo vapor, encontrava-se ofegante e com muita sede, um mínimo de descuido e seu adversário produziria um desastre.
Maria procurou manter-se lúcida, hesitou por um momento e recordou de um pormenor que seu pai havia declarado uma vez, no qual essa espécie de lobo tem o instinto movido pelo cheiro de sangue. Sem movimentos hostis e respiração controlada abaixou-se cuidadosamente e juntou próximo de si um objeto pontiagudo e perigoso que anteriormente havia notado a sua existência quando nele esbarrou e com ele bateu violentamente em seu braço, repetidas vezes ela praticou esse gesto doloroso, a garota estava se auto-flagelando para desviar a atenção do lobo e assim proteger seu valioso amigo, gostas de sangue caiam sobre a neve. O lobo vivamente encarou a garota e ela cautelosamente com passos macios e pequenos foi se distanciando e o predador emanando fome e prazer foi a acompanhando, Maria se aproximou de vários troncos podres e pontiagudos e se posicionou de costas para eles.
A criatura medonhamente uivava, a maldade estava profundamente impregnada em seus vivos olhos, preparou um ataque e em seguida já estava velozmente correndo em sua direção, Maria ali permaneceu inerte. O corpo da garota havia paralisado, seus olhos permaneceram presos naquela cena, o cordeirinho confuso correu para acudi-la, e com toda sua força empurrou as suas pernas com a cabeça, a menina se desequilibrou e desviou do ataque violento do lobo, o que o fez ir de encontro aos troncos pontiagudos, eles rasgavam, trituravam o corpo do lobo, o animal agonizou até a morte. O pequeno cordeiro sentiu o sangue escorrer por entre a sua lã e tocar a branca neve, logo mais estava vermelho vivo e ele vidrou o rostinho de Maria, percebeu que o ataque não falhara por completo, a menina encontrava-se gravemente ferida, o sangue deslizava da sua boca e respingava em sua roupa clara. Em questões de segundos a garota foi ao chão, o animalzinho lambia suas mãos desconsoladamente, Maria ainda consciente, mas com os olhos vazios de expressão, para tranquilizá-lo ofereceu-lhe um sorriso de conforto e ainda debilitada, com seu braço horrendamente ferido acariciou a sua lã manchada de sangue.
O cordeiro tomado por terrível sofrimento se desesperou e correu de forma descomunal em busca de socorro, ele havia perdido o controle, não podia cogitar a idéia de que a sua razão de viver, estava ali morrendo, o fio da vida estava lentamente a deixando. Para não sucumbir, ele corria indescritivelmente, sua velocidade ultrapassa os limites lógicos, apavoradamente ele corria na neve. O seu lamento cortava os ventos gélidos, a sua lamúria sonora ecoava os céus, o mundo havia sido suspenso, e nada era mais importante do que a sobrevivência da doce Maria. Incansadamente corria e corria, seus movimentos e articulações estavam equilibrados, ele não era mais o mesmo, as respirações falhas de sua dona quebravam qualquer vestígio de lucidez, perfuravam o seu espírito inocente.
Ele sentiu a alma da garota cair na escuridão, e assim continuou a percorrer essa longa distância, os galhos afiados como facas, cortavam a sua pele, mas o medo de perde-la superava qualquer dor. Enfim, ele chegou ao local predestinado, e encontrou o pai de Maria, o seu maior desejo naquele momento era se fazer entender, o pai percebeu que havia algo de errado, o cordeiro estava vermelho vivo e muito debilitado, mas o mais assustador foi perceber que a presença de sua filha não constava, de prontidão seguiu o caminho apontado, algum tempo depois avistaram a garotinha, ele pegou a sua menina incrivelmente machucada e a levou de volta nos braços. Ao chegarem ao quarto de Maria, os devidos cuidados foram executados, e por longos e intermináveis dias ela adormeceu e recuperou-se.
Por todo esse período o cordeirinho velou e zelou o seu sono, finalmente em uma noite fria a garota despertou do seu sono profundo, parecia estar bem melhor, o seu quarto estava levemente iluminado pela luz do luar, e em seguida ao pé da cama avistou seu amado amigo encolhido, aproximou-se dele e com a maior felicidade, passou a mão de forma tranquila para despertá-lo, mas não obteve resposta, freneticamente repetiu os movimentos, lágrimas escorriam do seu rosto e deslizavam na lã, percebeu que ele havia descansado eternamente, agora Maria tinha um cordeirinho morto...